Entre a virtude e o dever segundo Ricœur: sentidos e fundamentos éticos

1. Introdução

Paul Ricœur é o exemplo do filósofo que articula o horizonte da vida boa, que parte da estima de si, recorrendo à tradição aristotélica, com questões de justiça, da distribuição e da imputabilidade, recorrendo à tradição kantiana. Porque a síntese das duas tradições feita por este autor foi muitíssimo bem conseguida, neste capítulo apresentar-se-ão as linhas gerais da sua Ética.1 Paul Ricœur, no que chama «Ma Petite Éthique»2, distingue três níveis na vida moral: A humanização em saúde, fundamentada pelo pensamento de Paul Ricœur recebe novo folgo hermenêutico, entre uma humanização aretológica (Aristóteles) e uma humanização deontológica (segundo o idealismo transcendental de Koenigsberg).

2. O nível da ética

2.1. Vida boa: sentido e valor

Para P. Ricœur, a moral, antes de ser a obediência à lei e a submissão à obrigação, é marcada pelo optativo. O filósofo dá prioridade à ética relativamente à moral. A vida moral é, antes de tudo, realização do desejo de ser, pelo que as principais referências do autor neste capítulo são Aristóteles, com a sua visão teleológica da vida moral; Espinosa, com a sua ideia de conatus, em que o ser se esforça por perseverar no seu ser e participar na produtividade da substância; e Jean Nabert, para quem a ética é afirmação de ser na falta (manque) de ser. No VII capítulo de Soi-même comme un autre (SCA, 199-236), Ricœur estuda e expõe estas três dimensões da intenção ética: a estima de si, a solicitude e o sentido da justiça. A estima de si é o primeiro momento da intenção ética pois que a vida boa é o objecto da visée ética. O sujeito moral não é um eu penso (Descartes), mas um eu posso (Merleau-Ponty), porque é um sujeito capaz de agir com intenção e não mecanicamente. Este «eu posso» tem um duplo sentido: (1) poder fazer e (2) poder avaliar. O eu é digno de estima «não principalmente devido às suas realizações mas fundamentalmente às suas capacidades» (SCA, 212). Sobre esta realização do eu do ser humano, Ricœur tem que responder a várias objecções. Como se pode defender a visão teleológica da ética sem cair numa moral dos bons sentimentos? Como escapar ao relativismo ou ao subjectivismo que a noção de vida boa parece implicar? O sentido da nossa vida é o nosso querer? Na realização do eu, o que é que depende da deliberação e da acção? O que é que depende do acaso, das circunstâncias e o que não depende de nós? Qual é o enraizamento biológico da nossa ipseidade? Ricœur responde a estas objecções recorrendo à ideia de «prática» de Aristóteles. A prática exprime uma distância em relação «à ética dos bons sentimentos e a exigência de efectuação ética» (PPE, 20). O sujeito que realiza a prática «é um ser vivo, incarnado, enraizado numa corporeidade» (PPE, 20). A prática, porque habitada por uma teleologia imanente, afasta-nos do subjectivismo e do relativismo do desejo e dos valores porque, exigindo deliberação, ela confronta-nos com o que não depende de nós e ela mesma pode ser avaliada subjectiva, social e universalmente, apelando a noções como «critérios de excelência» que nenhuma realização concreta consegue esgotar. A vida boa é uma ideia limite em função da qual interpretamos as nossas acções e a nós próprios, como refere P. Ricœur: «É num trabalho incessante de interpretação da acção e de si mesmo que prossegue a procura de adequação entre o que nos parece o melhor para o conjunto da nossa vida e as escolhas preferenciais que governam as nossas práticas» (SCA, 210). Ricœur recorre assim à concepção de «unidade narrativa de uma vida» (SCA, 209) para exprimir a unidade de uma vida ética na procura da vida boa, qualidade sempre frágil. Para Ricœur há um plano de vida que lhe dá unidade, embora reconheça «a fragilidade da qualidade boa do agir humano» (SCA, 210). E a leitura desse plano leva o sujeito ético a interpretar o texto da acção e a interpretar-se a si mesmo; «no plano da ética, a interpretação de si torna-se estima de si» (SCA, 211). Estas interpretações são controversas pois que não são verificáveis segundo os modelos das ciências naturais, mas a partir de uma espécie de evidência experimental que reveste a «atestação, quando a certeza de ser autor do seu próprio discurso e dos seus próprios actos se faz convicção de bem julgar e de bem agir, numa aproximação momentânea e provisória do bem-viver» (SCA, 211). A humanização em saúde, teologicamente, terminará numa «boa vida « iou «vida boa» para o doente, fruto dos cuidados e das curas de médico. Assim, a humanização somente existirá numa relação teleológica entre médico e doente.

2.2. Sentido da Alteridade: com e para o Outro

Continuando a meditar sobre a «vida boa», Ricœur sublinha que em quase todas as línguas «ser bom» significa (1) praticar as acções boas e (2) preocupar-se com os outros. A referência ao outro está sempre implicada na vida boa. O tema de reflexão de Ricœur, nesta meditação sobre a relação com o outro, é o da solicitude pensada como «a troca entre o dar e o receber» (SCA, 220). Para Ricœur a solicitude é «procura de igualdade através da inigualdade (SCA, 225), é actividade, actualização nunca acabada da potência. O sujeito ético, para o autor, não é um sujeito individualista, previamente portador de direitos antes de entrar na sociedade (o sujeito dos liberais). O sujeito ético realiza-se no confronto e na cooperação com a «alteridade» nele mesmo e fora dele mesmo. O sujeito ético, capaz de acção, tem iniciativas, mas a sua acção é também muitas vezes resposta a uma solicitação, diferentemente de Lévinas para quem o eu age sempre em resposta à ordem do outro. Para desenvolver o conceito de solicitude, Ricœur aborda o tema da amizade como este filósofo, Ricœur pensa que «a amizade faz a transição entre a visée da «vida boa» que nós vimos reflectir-se na estima de si, virtude solitária na aparência, e a justiça, virtude de uma pluralidade humana de carácter político» (SCA, 213).

A amizade não é um sentimento psicológico, mas uma virtude ética (uma excelência). O amor de si não é uma forma de egoísmo escondido porque, como o próprio Aristóteles diz, «o homem feliz precisa de amigos» (Ética a Nicómaco, IX, 9). A amizade, que pode ser de várias espécies (distingue-se pelos objectos/motivos que lhe dão origem), tem duas características: a igualdade e a mutualidade. A amizade implica sempre uma reciprocidade que pode levar do viver em comum até à intimidade. Esta tem reclevo na humanização em saúde, dadop que implica uma relação fiduciária entre um médico e um doente. Estas características, igualdade e mutualidade, põem em acção um equilíbrio entre o dar e o receber. Mas este equilíbrio não significa que amizade e justiça se identificam. A amizade e a justiça distinguem-se. A amizade rege «relações inter-pessoais» (SCA, 215), implica uma vida partilhada que pode visar a intimidade, o que só é possível em grupos pequenos em que reina a igualdade. A justiça, por seu turno, «rege as instituições» (SCA, 215), envolve numerosos cidadãos, cujas relações são mediatizadas por instituições e «na justiça a igualdade é no essencial igualdade proporcional, tendo em conta a desigualdade das contribuições» (SCA, 216). Para Ricœur, como para Aristóteles, a amizade é uma virtude ética; ela não é mero sentimento psicológico; é uma actividade e supõe um futuro. Também para Ricœur, como para o estagirita, é preciso amar-se (estima de si) para se amar o outro (amizade), porque a estima de si é amar aquilo que há de melhor o nosso autor não partilha com Aristóteles a tendência intelectualista de identificar o viver em comum com o pensar explora a dimensão de falta (manque) e de vulnerabilidade do eu que leva a uma ruptura, que Aristóteles não pensou, entre a estima de si e a amizade. O amigo procura-me também porque lhe falta algo que espera de mim. Para tratar de um «conceito franco de alteridade», que não existe em Aristóteles (SCA, 219), Ricœur recorre ao ágapé cristão, à noção de conflito de Hegel e à filosofia de Lévinas que, contrariamente ao que se verifica em Aristóteles, dá a primazia ao outro e não ao eu. Em Lévinas não é o eu que tem a iniciativa, mas o outro. Para este filósofo há uma assimetria na relação eu-outro, sendo a iniciativa sempre do outro, perante quem o eu tem de responder, ser responsável, não havendo reciprocidade. Para Ricœur este modelo de Lévinas não permite pensar a amizade que implica sempre reciprocidade no dar e no receber, o que não se encontra em Lévinas (SCA, 221). Lévinas, entende o filósofo que estamos a expor, move-se na ordem do imperativo e, portanto, da moral, e não na ordem da ética.

Aprofundando o tema da relação de afecção sugerida por Lévinas, Ricœur vai analisar a solicitude na experiência do sofrimento que radicaliza o sofrer (patir). No sofrimento, o outro aparece como diminuído, incapaz de agir, de fazer, atingido na sua integridade. «Aqui a iniciativa, em termos precisamente de poder-fazer, parece pertencer exclusivamente ao eu que a sua simpatia, a sua compaixão, sendo estes termos tomados no sentido forte do desejo de partilhar a pena de outrem» (SCA, 223). Mas não é só o que sofre que recebe. Há uma certa igualização entre o que sofre e o que sofre com ele (simpatia=sym+pathos), porque o que sofre permite que o outro compartilhe do seu sofrimento (seja afectado pelo sofrimento do outro), o que é diferente da piedade «em que o eu goza secretamente de se saber poupado» (SCA, 223). A relação de amizade, solicitude, envolve «reversibilidade, insubstitualidade, similitude» (SCA, 225). Reversibilidade: quando o outro, enquanto um eu, se dirige a mim dizendo «tu», eu sinto-me chamado enquanto primeira pessoa; insubstituabilidade: os papéis são reversíveis, as pessoas não, na solicitude cada um é insubstituível; similitude: «não posso estimar-me a mim mesmo sem estimar outrem como a mim mesmo» (SCA, 2226); há uma equivalência entre o «tu mesmo» e o «como eu mesmo». Naturalmente, a humanização em saúde postulará uma alteridade. É nesta que se realiza a sua aretologia.

A humanização em saúde um sentido dual de alteridade, na relação médico-doente. Os predicados da insubstitualidade, similitude e reversibilidade estão bem patentes na humanização em saúde, porque são numa relação de mútua confiança. Quer isto dizer que a humanização em saúde é uma «solicitude». Há uma iniqualdade entre um doente e médico, mas as patologias determinam uma igualdade de sentido e de sentimentos, bem como de valores.

2.3. A implicação das «instituições justas»

Segundo o pensamento de P. Ricœur, «A instituição como ponto de aplicação da justiça e a igualdade como conteúdo ético do sentido de justiça, tais são os dois jogos de investigação […] sobre a terceira componente da visée ética» (SCA, 227). Trata-se da justiça que é «»uma exigência de igualdade» que se formula pela máxima «a cada um o seu direito»» (PPE, 24). A reflexão do autor é também uma atenção à pluralidade (SCA, 228), à concertação (SCA, 229) e ao debate. Tal como fez relativamente à estima de si e à solicitude, o que o filósofo quer mostrar nestas páginas é a dimensão teleológica da justiça. Para ele não se pode limitar a reflexão sobre a justiça à teoria moral, deontológica ou procedimental (Ética da discussão). A justiça deve ter uma dimensão teleológica e ética: «o justo situa-se entre o legal e o bom» (PPE, 24).3 Ricœur dá uma dupla dimensão à justiça no sentido ético. Uma (1) dimensão metafísica e religiosa e uma (2) dimensão política. Uma dimensão metafísica e religiosa: «a origem quase imemorial da ideia de justiça» (SCA, 231). Nos mitos e na tragédia gregos, e mesmo nas nossas sociedades secularizadas, encontramos expressões que manifestam o sentido de justiça que «não se esgota na construção de sistemas jurídicos» (SCA, 231). Esta dimensão também se manifesta no facto de o sentido de justiça ser mais sensível ao que falta, o que encontra a sua expressão nas queixas contra a injustiça. Foi este contexto que levou Aristóteles a conceber a justiça como virtude, uma vez que reconhece «a vasta polissemia do justo e do injusto» (SCA, 232).

Para o filósofo, no plano político, a fonte da justiça, tanto distributiva como judiciária, não está na dominação, mas no «querer con-viver»4 de uma comunidade histórica. As instituições, que se caracterizam por costumes comuns e não por regras, são a encarnação dessa vontade de «viver conjuntamente» («vivre ensemble»), o seu éthos feito de tradições e mitos, e também de projecto e de «exigência de igualdade» (SCA, 227). Para produzir e justificar as regras de justiça que têm sentido (a justiça deontológica), recorre-se ao «querer con-viver», tirando-o do «estatuto de o esquecido» (SCA, 230) que resulta de esta instância estar normalmente invisível porque «coberta pelas relações de dominação» (SCA, 230). É o «querer con-viver» («vouloir vivre ensemble») que justifica as regras de convivência. Como corolário do que se acaba de dizer, Ricœur afirma não poder identificar pura e simplesmente o justo com a observância da lei, o respeito pela legalidade ou mesmo o respeito pela igualdade. Já em Aristóteles, diz o autor, a justiça distributiva, que não significa uma «igualdade aritmética», que não convém «à natureza das pessoas e das coisas partilhadas» (SCA, 235), é pensada em termos de «igualdade proporcional que define a justiça distributiva» (SCA, 235). Esta justiça «tem em conta a diversidade dos bens a partilhar, dos papéis, das tarefas, das responsabilidades» (PPE, 25). À justiça, no sentido deontológico, cabe a tarefa de construir as regras de distribuição que justifiquem «uma certa ideia de igualdade sem caucionar o igualitarismo» (SCA, 235). A instituição hospitalar e os Centros de Saúde são um enfoque das justiças comutativa e distributiva na realização da humanização em saúde. A casa da doença (hospital) será a casa da humanização (relação médico-doente).

3. O grau da moral: aspetos e fundamentos

O nível da moral caracteriza-se pelo aparecimento da norma. No 8º Estudo de Soi-même comme un autre (SCA, 237-278), Ricœur quer justificar a necessidade «de submeter a ética à prova da norma» (SCA, 237). Nesta parte da sua «Petite Éthique», o autor vai enfrentar a ordem do obrigatório, do imperativo com pretensão universal.

A ética aponta uma intenção; a moral desdobra essa intenção e dá-lhe a sua «efectuação», tradu-la tendo em conta as ameaças e obstáculos que se opõem à sua realização. Ela tem em conta a violência e procura responder-lhe. É devido a isto que a norma se enuncia muitas vezes na forma negativa: »não matar», «não roubar». A relação da norma com a intenção, da moral com a ética, é de subordinação, mas também relação dialéctica: a norma tem repercussões na intenção. Como afirma Joseph Duchêne citando o autor: «Ricœur dá à norma «o seu justo lugar» (SCA, 202)» [PPE, 26]. A humamização tem presente as normas, ora as normas jurídicas, ora as normas morais. Fazem parte do agir e do evoluir da humanização em saúde.

3.1. Entre a «vida boa» e a «obrigação moral»

Assim, poderemos por começar por dizer que, na humanização em saúde, há uma relação dual entre uma «vida boa»(teleologia aretológica) e uma «obrigação moral»(deontologismo moral), expresso na normatividade. Se considera, à primeira vista, que há uma ruptura total entre a tradição teleológica e eudemonista de Aristóteles e a tradição deontológica e formalista de Kant, Ricœur mostra que esta ruptura não é total e que cada uma das tradições traz à ideia a outra, pelas seguintes palavras: «Sem negar de modo nenhum a ruptura operada pelo formalismo kantiano em relação à grande tradição teleológica e eudemonista, não é inapropriado marcar, por um lado, os traços pelos quais esta última faz sinal em direcção ao formalismo e, por outro lado, os sinais pelos quais a concepção deontológica da moral permanece ligada à concepção teleológica da ética» (SCA, 238).

Para mostrar isto mesmo, Ricœur vai analisar dois conceitos fundamentais da moral: a universalidade e a obrigação.O autor considera que encontramos antecipações implícitas do universalismo na tradição teleológica quando Aristóteles afirma que o termo médio («mésotès») é um critério de todas as virtudes, quando o próprio Ricœur deu implicitamente um sentido universal às capacidades do sujeito moral tais como a iniciativa da acção, a escolha por razões, a estimação e avaliação dos fins da acção, «como sendo aquilo em virtude do qual nós as tomamos por estimáveis, e nós mesmos por acréscimo» (CSA, 239). Também a obrigação tem laços com a visée da vida boa. Como afirma Duchêne: «há uma ligação entre o optativo aristotélico e o imperativo kantiano» (PPE, 27) porque, como afirma Ricœur: a vontade toma na moral kantiana o lugar que o desejo razoável ocupava na ética aristotélica» (CSA, 240). Contudo, apesar desta ligação, há diferenças importantes porque «o desejo reconhece-se na sua visée, a vontade na sua relação com a lei» (CSA, 240). Além disso, para Kant o desejo é «patológico». Ricœur considera que o homem moral kantiano está mais dividido do que o homem moral aristotélico porque, na relação mandamento-obediência, o filósofo alemão rejeita as inclinações sensíveis porque elas constituem uma ameaça à universalidade. Kant pensa que o desejo é hostil à racionalidade, e Aristóteles pensa que o desejo pode ser racional. Desta última diferença decorre (1) o rigorismo da moral kantiana e (2) a oposição com que a autonomia e a heteronomia surgem nesta moral (a lei moral recorre para a noção de auto-legislação sem qualquer relação com a lei natural e as outras causas). «A oposição entre autonomia e heteronomia é assim […] constitutiva da ipseidade moral» (SCA, 246). Para Aristóteles, as relações entre autonomia e heteronomia não são tão exclusivas; ele admite aquilo que alguns designam por uma autonomia heterónoma ou uma heteronomia autónoma.5Se a tradição teleológica antecipa o formalismo, a moral kantiana, pelos seus impasses, faz sinal na direcção da moral teleológica. Ricœur caracteriza esses impasses mostrando a impossibilidade de fundar a moral no conceito de autonomia e auto-legislação. O filósofo considera que Kant esqueceu, ou antes não tematizou, a dimensão de passividade do sujeito moral presente na sua filosofia. Ao menos sob a forma de rasto. Constatando que Kant reconhece que (1) a autonomia é «um facto da razão» em que a razão pura se torna prática e, (2) na formulação do imperativo categórico que diz que devemos tratar o outro como fim, que o respeito não é pela lei mas pelos outros que são pessoas (FMC, 68), pergunta Ricœur: «não há antes ali, dissimulado sob o orgulho da asserção de autonomia, a confissão de uma certa receptividade na medida em que a lei, determinando a liberdade, a afecta?» (SCA, 248).6 Além disso, para Kant o respeito é um sentimento da razão prática e, enquanto sentimento, também evoca uma passividade.

Na humanização em saúde há sempre a virtude (ética aristotélica) e o dever (ética kantiana). Aqui uma não é sem a outra. Resta saber por onde começar, se pelo dever, se pela virtude. Umas vezes começa pela obrigação moral, que conduzirá a uma autonomia para a humanização. Mas, outras vezes começa-se pela virtude, e então a humanização torna-se num teleologismo aretológico.

3.2. Entre a solicitude e a norma

Ao passar da exigência da estima de si para a dimensão da solicitude e para a exigência do respeito por outrem, têm que se explicitar os desafios da Regra de Ouro, a qual pode ser formulada negativamente - «não faças ao teu próximo o que detestas que te seja feito» - e positivamente - «o que vós quiserdes que os homens façam, fazei-lho vós também» (SCA, 255).7 A formulação negativa «deixa aberto o leque das coisas não proibidas, e assim dá lugar à invenção na ordem do permitido» (SCA, 255). A formulação positiva torna mais claro o motivo da beneficência «que leva a fazer alguma coisa em favor do próximo» (SCA, 255).Estas duas formulações enunciam «uma norma de reciprocidade» (SCA, 255). Esta «reciprocidade exigida destaca-se sobre o fundo da pressuposição de uma dissimetria inicial entre os protagonistas de acção – dissimetria que coloca um na posição de agente e o outro na de paciente» (SCA, 255).

As relações ligadas a esta dissimetria podem ser «ocasião da violência [… que] reside no poder exercido sobre uma vontade por uma vontade» (SCA, 256). Tenha-se presente que o autor distinguiu entre «poder sobre» e «poder em comum».Este «poder sobre» vai desde a influência, ao assassinato ou à tortura. Ricœur esboça uma fenomenologia da violência e das suas formas mais frequentes (SCA, 256-258): «a diminuição ou destruição do poder fazer do outro», a destruição da estima de si (com a tortura), a «humilhação [… que] não é outra coisa que a destruição do respeito por si», a violência dissimulada na linguagem, a violência do ter, «a astúcia», «a violência sexual». Em todas estes casos o «poder em comum» é transformado em «poder sobre», , «a moral responde (replique) à violência. E, se o mandamento não pode deixar de revestir a forma da interdição, é precisamente por causa do mal: a todas as figuras do mal responde o não da moral.8 Aí reside sem dúvida a razão última para a qual a forma negativa da interdição é inexpugnável» (SCA, 258). Para Ricœur a moral kantiana é incapaz de dar ao respeito pelo outro a sua verdadeira dimensão e, no entender do filósofo, isto deve-se a duas fraquezas da moral deontológica kantiana: (1) a sua exagerada desconfiança relativamente ao mundo dos sentimentos e (2) a sua incapacidade de assumir a alteridade. Quanto à primeira, é conhecida e torna-se evidente na posição distante que o autor alemão tem relativamente à Regra de Ouro. «Esta desconfiança explica-se pelo carácter imperfeitamente formal da Regra. Esta pode sem dúvida ser mantida parcialmente formal, enquanto ela não diz que aquilo que outrem amaria ou detestaria que lhe fosse feito. Em contrapartida, ela é imperfeitamente formal, na medida em que faz referência a amar e a detestar: ela introduz assim alguma coisa da ordem das inclinações» (SCA, 259-260). A solicitude é um elemento fundamental nahumanização em saúde, dando-lhe forma e qualidade.

4. Pela sabedoria prática: um novo modelo para a humanização

No entender de Ricœur, a fonte destes conflitos é «não somente a unilateralidade dos carácteres» mas a própria unilateralidade «dos princípios morais confrontados com a complexidade da vida» (SCA, 290). Quando isto acontece, diz o autor, «a sabedoria prática não tem outra fonte […] se não recorrer, no quadro do juízo moral em situação, à intuição inicial da ética, a saber a visão ou visée da «vida boa» com e para os outros em instituições justas» (SCA, 279). A prudência (phonésis) é a virtude por excelência da sabedoria prática, a qual não é uma fuga ao empenhamento, ao engajamento, «mas a vontade de aplicar a regra geral ao caso particular» (PPE, 30). Como Ricœur afirma, seguindo Aristóteles, «o homem de sábio julgamento determina ao mesmo tempo a regra e o caso» (SCA, 206). Para a sua análise, Ricœur recorre à Antigona de Sófocles, em que a personagem vive o conflito derivado da obrigação de dar sepultura ao irmão, Polinices, segundo os ritos da cidade, embora se tenha tornado inimigo da cidade, e a proibição de fazer esse enterro determinado por Creonte, senhor da cidade de Tebas. Antígona vê-se perante um conflito entre as relações de amizade e as relações políticas, conflito para o qual parece impossível encontrar uma solução que reconcilie as duas obrigações, pois que nenhuma das partes parece disposta a ceder parcialmente nas obrigações que impõe. Assim, o conflito confronta-nos com aporias ético-práticas e abre a moral para a teologia, a cosmologia, a demonologia, uma vez que os agentes «estão ao serviço de grandezas espirituais que, não somente as ultrapassam, mas, por sua vez, abrem caminho a energias arcaicas e míticas que são também as fontes imemoriais da desgraça (malheur)» (SCA, 281). Ricœur considera que estes conflitos são solúveis. Para ele não é aceitável a «sedução por um situacionismo moral que nos entregaria sem defesa ao arbitrário» (SCA, 280), nem o conselho directo à maneira da Sittlichkeit do estado de Hegel. Para ele «é de traçar uma via média entre o conselho directo, que se revelará bem enganador, e a resignação ao insolúvel» (SCA, 283). A solução de um conflito deve ser procurada num meio termos entre os dois extremos.Nesta apartado Ricœur analisa (1) os conflitos institucionais, (2) os relacionais e (3) os de identidade.O autor avalia três conflitos institucionais que aparecem a propósito da justiça. O primeiro é (1) o conflito entre os interesses individuais e a cooperação a propósito da partilha, pois que a partilha, como já se disse, é «tomar parte» (cooperar) e «ter parte» (reivindicar direitos individuais). O segundo (2) é o conflito ligado à pluralidade e diversidade de bens, que foi bem ilustrado por Walzer quando este fez o desdobramento da ideia de justiça e a justaposição de «esferas» de justiça. Para Walzer, não se pode invocar as mesmas regras de justiça quando se trata de partilhar lucros, património, vantagens sociais, responsabilidades, etc. O terceiro (3) é «o conflito ligado ao carácter historicamente situado dos bens, chamado também conflito entre a exigência de universalidade e a exigência de contextualização» (PPE, 32). Há sempre conflitos no domínio da humanização em saúde, em virtude da forma como se faz a aplicação das justiças comutativa e da distributiva.

Esta área de conflitos «é desenhada pelas aplicações do segundo imperativo kantiano» (SCA, 305) cuja formulação é «Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio».9 A questão é suscitada pela dificuldade em articular a universalidade da norma que Kant defendeu, dando grande importância à não-contradição lógica, e a exigência de respeito pela singularidade deixada de lado pelo autor da Fundamentação da Metafísica dos costumes. Com palavras de Ricœur: «a possibilidade de um conflito surge contudo quando a alteridade das pessoas, inerente à própria ideia de pluralidade humana, se verifica (s’avère) ser, em certas circunstâncias importantes, incoordenável com a universalidade das regras que subjazem (sous-tendent) à ideia de humanidade; o respeito tende a cindir-se em respeito pela lei e respeito pelas pessoas» (SCA, 305). Ricœur ilustra este conflito com o exemplo da falsa promessa. Aqui a acção é imoral, não só por ser infiel à lei, mas é sobretudo uma infidelidade à expectativa (attente) de outrem. Como diz Ricœur: «não cumprir a sua promessa, é simultaneamente trair a expectativa do outro e a instituição que mediatiza a confiança mútua dos sujeitos falantes» (SCA, 312). Com palavras de Duchêne: «é preciso dar uma importância maior à expectativa de outrem que à rigidez estóica da fidelidade à lei» (PPE, 32). Em moral, não se pode atender apenas ao princípio de não contradição, como fez Kant. A razão prática tem outras exigências e releva de outra lógica, pois que o agir tem originalidades que o distinguem do saber. Para ilustrar o conflito entre respeito pela lei e a atenção às situações singulares, Ricœur trata de duas questões de moral contemporânea: «O respeito da pessoa na «vida que começa» («vie commençante»» e da «vida que está a acabar (finissante)?» (SCA, 314).Falta tratar dos conflitos ligados à autonomia. Na exposição sobre a autonomia, já vimos que Ricœur chama a atenção para os limites internos da autonomia da razão kantiana: ««facto» da razão e portanto receptividade, afectação e passividade, impotência relativa face ao mal» (PPE, 33).10Outras experiências, considera Ricœur, levantam problemas à autonomia. Para ele «uma autonomia solidária da regra de justiça e da regra de reciprocidade não pode mais ser uma autonomia auto-suficiente» (SCA, 320). Ela deve ser solidária com a regra de justiça e a reciprocidade que exprime a alteridade. No entendimento de Ricœur, torna-se necessário corrigir Kant no que respeita à identificação que ele faz entre heteronomia e permanência na idade da menoridade. Há que conciliar autonomia e certas formas de dependência.

O juízo moral é histórico e cultural, mas isto não conduz, defende o filósofo, à tese contextualista do pluralismo céptico. A discussão e a argumentação permitem superar os conflitos: «a confrontação das convenções e da argumentação pode dar origem ao «equilíbrio reflectido entre ética da argumentação e convicções bem pesadas» (PPE, 33).Todas estas análises ricœurianas têm por objectivo responder à pergunta «quem é o sujeito moral de imputação?» Para responder a esta questão, pensa o autor que a filosofia da consciência não é suficiente porque o eu não é apenas um eu no nominativo, mas também um eu no acusativo; o eu reflecte sobre si e sai de si, pelo que a relação com o outro é constitutiva do sujeito. Ricœur distingue duas dimensões da identidade do eu, a identidade «mesmidade», identidade bastante estática (identidade genética, identidade de carácter, etc.), e a identidade «ipseidade», mais dinâmica e dialéctica (identidade do homem que cumpre a sua promessa apesar das dificuldades, permanência do eu que choca com as resistências e, sobretudo, com a alteridade de outrem). O sujeito moral é caracterizado pela imputabilidade que se define pela adscrição da acção ao seu sujeito sob a condição dos predicados éticos e morais. Além disso, a imputação implica o reenvio a si da estima de si, mediatizado pelo percurso que envolve a ética, a moral e a sabedoria prática. O sujeito moral caracteriza-se também pela responsabilidade que reenvia para a persistência empírica do sujeito e, sobretudo, para a manutenção do eu na espessura do quotidiano e do presente. A responsabilidade reenvia também para a temporalidade: ela assume e prolonga o passado, mas também se vira para o futuro na medida em que ele depende do sujeito. Um novo modelo fundamental, que determinamos para humanização em saúde, pelo pensamento de Ricœur, reside na dimensão fronética. Esta está na proa inteligente, que se denomina como sendo a prudência. Esta foi descrita por S. Tomás de Aquino como recta ratio agibilium.11

5. Conclusão

Constatando que cada uma das tradições (aretológica e deontológica) tem a sua cota parte de verdade, pois que a vida moral é procura do bem e obediência às normas, o autor procura articular as duas tradições: a procura da vida boa deve passar pelo crivo das normas que a tradição cultural consagrou. Nessa articulação, ao estabelecer como critério primeiro da vida moral a procura do bem, da vida boa, da vida realizada, Ricœur dá a primazia à tradição aristotélica. A segunda nota é para chamar a atenção para a distinção dos três níveis da vida moral - o ético, o moral e o da sabedoria prática - que o autor apresenta. A chamada de atenção para estes níveis, e para a sua articulação, permite ver com mais clareza a vida moral e assim encontrar soluções para enfrentar as problemáticas com que o sujeito moral se defronta. O último nível é fundamental a ter em conta na reflexão ética. Moral é a acção e é para ela que a reflexão deve preparar o sujeito moral. A terceira observação é para referir algo fundamental para a elaboração das éticas aplicadas.

Ricœur aponta como critério para a solução destes conflitos a ética como procura da vida boa. Seguindo pelo pensamento de Ricœur, a humanização em saúde recebe uma nova forma paradigmática, que dialeticamente poderemos denominar de «deliberação fronética». Poderemos asseverar que faz a síntese entre o «paternalismo hipocrático-aristotélico» e o «deontologismo kantiano». Aqui temos uma forma criativa de apresentar o valor e o sentido hermenêutico da humanização em saúde, que no seu agir, tem como cerne a aplicação casuística da «sabedoria prática».

A «sabedoria prática» manifesta-se como uma bússola para a humanização em saúde, como critério e como fundamento.


  1. Para uma exposição sintética do pensamento ético do autor, cf. Jefrey Andrew, Barash - «Paul Ricœur, né en 1913». M. Canto-Speber, (dir) – Dictionnaire d’éthique et de morale,t. 2. 1ª ed. Quadrige. Paris: P.U.F. 2004, pp. 1687-1691 [tradução brasileira: ID – Dicionário de Ética e Filosofia Moral 2. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, pp. 512-515]. ↩︎

  2. Paul Ricœur – «De la morale à l’éthique et aux éthiques». Paul Ricœur – Le juste 2. Paris: Éd. Esprit, 2001, pp. 55, p. 103, nota 1. ↩︎

  3. Cf. Paul Ricœur «Le juste entre le légal et le bon».ID. - Lectures 1. Autour du politique. Paris: Les Éditions du Seuil, 1991, 176-195. ↩︎

  4. A expressão que Ricœur utiliza é «vivre ensemble» que é difícil de traduzir. Poder-se-ia dizer «viver-juntos», como fizemos acima, «viver conjuntamente», «viver em comunidade». ↩︎

  5. Sobre este tema, cf. Roque Cabral - «Liberdade e ética: autonomia e heteronomia?». AA. VV. - Ética e liberdade. Coimbra: Centro Universitário Manuel da Nobrega, 1988, pp. 53-63. ↩︎

  6. Esta mesma ideia é repetida pelas mesmas palavras em Paul Ricœur – «John Rawls: de l´’autonomie morale à la fiction du contrat social», (1990). ID. - Lectures 1. Autour du politique. Paris: Éditions du Seuil, 1991, p. 199. ↩︎

  7. Sintetizamos aqui SCA, 254-264. Ricœur apresenta a Regra de Ouro, na sua formulação negativa, como se encontra em Hillel, mestre judeu de São Paulo (Talmude da Babilónia, Shabbat, p. 31a) e, na sua formulação positiva, como se encontra em Lc 6, 31. O filósofo também chama a atenção para o facto de estas noções não serem invenção do filósofo; este procura apenas esclarecê-las e justificá-las (SCA, 255). Sobre a «Regra de Outro», cf. Paul Ricœur - «Entre philosophie et théologie I: d’or en question. (1989). P. Ricœur - Lectures III. Aux frontières de , 1992, pp. 273-279. ↩︎

  8. Sobre a questão do mal em Ricœur, cf. Paul Ricœur «Le mal: un défi à la philosophie et à la théologie (1986)», ID., Lectures III. Aux frontières de , 1992, pp. 211-23 e Fernanda Henriques (org.) - Paul Ricœur e a simbólica do mal. Porto: Edições Afrontamento, 2005. ↩︎

  9. I. Kant – Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, [1785]1998, p. 69. ↩︎

  10. Nesta altura do livro, Ricœur sintetiza nestes termos essas limitações: «Na ocasião da discussão sobre o «facto da razão» o reconhecimento de uma certa receptividade em virtude da qual a liberdade é afectada pela própria lei que ela dá, como se a auto-posição não pudesse ser pensada sem auto-afecção; foi, de seguida, esta outra afecção ligada ao respeito entendido como móbil, em virtude do qual a razão de um ser finito, afectando a sua própria sensibilidade, se faz razão afectada, segundo os modos opostos da humilhação e da exaltação; foi, enfim, esta afecção radical, radical como o mal radical, no seguimento do qual o livre arbítrio se encontra desde sempre submetido à «propensão» para o mal, a qual, sem destruir a nossa disposição para o bem, afecta a nossa capacidade de agir por dever» (SCA, 319-320). ↩︎

  11. Cf. Sancti Thomae Aquinatis – In Decem Libros Ethicorum Aristotelis ad Nicomachum, Ex Officina Libraria Marietti, Taurini, 1934, nºs 1217-1256. ↩︎